Essa é uma reprodução do Anuário do Leite 2022 da Embrapa adaptada pela equipe Movimento Agro. Paulo do Carmo Martins é pesquisador da Embrapa Gado de Leite, de Juiz de Fora-MG.
Este novo mundo que está surgindo vai impactar sobremaneira o setor de leite e derivados e as empresas que lhes fornecem insumos. Em todo o agronegócio, este setor, no Brasil, é o que apresenta o maior atraso em termos de organização, por ter vivenciado preços controlados até 1990. Todavia, esta condição traz uma oportunidade rara, pois permite que ele se estruture considerando o novo cenário desta década. As grandes transformações do setor já estão em curso e podem ser elencadas em doze tendências, a seguir:
1 - O CONSUMO DE LEITE CRESCERÁ NO BRASIL E NO MUNDO
O centro de gravidade econômica do mundo está mudando e a força que puxa a economia mundial está na macrorregião formada pelo Sul e Sudeste da Ásia. São vinte países agrupados, o que inclui China e Índia, que somam 51% da população do planeta e 20% da renda mundial e ambas em crescimento. O consumo de leite no mundo crescerá nessa macrorregião e nos países de baixa e média renda per capita em outras regiões, puxado pelo crescimento da renda.
Essa tendência inclui o Brasil, que tem consumo per capita próximo de 170 litros/ano. Entre 1996 e 2019, essa taxa cresceu 36%, o que é mais que o percentual de crescimento do consumo registrado para frangos, suínos e bovinos. E ainda é possível crescer pelo menos 100 litros per capita/ano, já que nos países desenvolvidos o volume anual consumido de leite na forma fluida e de derivados é de 278 litros. E, vale lembrar, o número de brasileiros continuará crescendo ao longo de toda a década.
2 - TEREMOS MENOS PRODUTORES E MAIOR PRODUÇÃO
Todos os países tradicionais na produção de leite experimentaram redução do número de produtores. Em 1970, os EUA contavam 650 mil produtores e em 2020 somavam apenas 32 mil. Na América Latina, esta tendência de queda do número de produtores está se registrando na Argentina, Chile, México e Uruguai. No Brasil, há carência de estatísticas oficiais atualizadas.
Mas, entre os 14 maiores laticínios, o número médio de produtores fornecedores caiu de 6 mil em 2005 para 2.400 em 2020. Em igual período, a média de produção diária neste grupo cresceu de 200 litros para 600 litros. E a produção média registrada em 2005 entre os maiores laticínios é hoje o mínimo exigido para aceitar fornecedor em muitos laticínios brasileiros. A produção nacional cresceu, nestes 15 anos, de 24,6 bilhões para 35,5 bilhões, ou o equivalente à produção anual da Argentina.
3 - TEREMOS MAIS VACAS POR PROPRIEDADE
Nos países tradicionais, o número de vacas cresce por propriedade. Na Europa, o percentual de propriedades com mais de 100 vacas no rebanho cresceu de 22% para 51% entre 1996 e 2016. Nos Estados Unidos e Canadá, esse percentual cresceu de 55% para 82% em igual período.
No Brasil não há estatísticas oficiais, mas levantamentos feitos por diferentes laticínios confirmam esta tendência. A proliferação dos sistemas compost barn, o uso progressivo de mecanização e automação e a percepção cada vez mais nítida por parte dos produtores que leite responde visivelmente à escala de produção são fatores que explicam essa tendência na intensificação produtiva.
4 - ATIVIDADE SERÁ INTENSIVA EM CAPITAL
A produção brasileira de leite cresceu continuamente até 2014, quando atingiu 35,1 bilhões de litros. A partir daí, tem andado de lado, oscilando anualmente em torno desse valor, com registros de quedas e recuperações sucessivas e alternadas. Isso sinaliza estagnação na produção, quando se analisam os dados em conjunto. Todavia, quando se analisam os dados do ranking Top 100, divulgados pelo portal Milkpoint e que reúne os cem maiores produtores brasileiros, os resultados mostram outro cenário. Continua ocorrendo crescimento anual na produção ofertada por este grupo.
Em 2009, a produção média foi de 11,5 mil litros/dia entre os cem maiores. Já em 2021, a produção média foi de 25,5 mil litros/dia, acréscimo de 121,7%. Em igual período, a produção nacional registrou crescimento de 22%. Portanto, vem ocorrendo a concentração da produção de leite, com a saída dos que produzem pouco, sem que haja impacto na oferta total de leite para o setor industrial. A atividade tenderá a ser cada vez mais intensiva em capital, o que será uma barreira à entrada de novos produtores e o incentivo para saída daqueles que estão na atividade.
5 - PRODUÇÃO SE ESPECIALIZANDO EM RITMO RÁPIDO
Leite sempre foi produzido e processado em todo o território nacional e a motivação era obter a produção perto do consumidor, dada a perecibilidade da matéria prima e dos derivados. Isso caracterizou um mercado com marcas regionais, tendo as padarias como o principal ponto de venda. Nas regiões onde a produção era inferior à demanda, o equilíbrio de mercado se dava por leite em pó, queijos maturados e derivados enlatados.
Mas, duas mudanças disruptivas ocorreram na cadeia produtiva. A primeira: nos anos 80 a inovação na embalagem fez com que o leite fluido ganhasse self share e trocasse o prazo de validade, que era de dias para meses, fazendo dos supermercados um novo player, substituindo as padarias como o principal ponto de venda. A segunda: na década seguinte o Brasil consolidou sua eficiente logística de frios, o que permitiu que refrigerados lácteos produzidos nos estados do Sul chegassem às regiões Norte e Nordeste. Esses dois fenômenos levaram ao surgimento de empresas nacionais na captação e na comercialização já nos primeiros anos deste milênio.
Estas transformações estruturais fizeram surgir regiões mais competitivas em termos de produção, como os estados do Sul e o cerrado brasileiro, que cobre vários estados da federação. A tendência da redução dos números de produtores, já em curso, levará ao surgimento de clusters de produção de leite claramente definidos, embora a produção ainda vá continuar a ocorrer em todo o território nacional nesta década.
6 - O AMBIENTE INSTITUCIONAL DEFINIRÁ A VELOCIDADE DA ESPECIALIZAÇÃO REGIONAL
A explicação mais frequente e incorreta para o sucesso de uma atividade são a abundância e a qualidade dos recursos disponíveis. Por exemplo, na região Sul seria mais fácil produzir leite, dado o padrão genético do rebanho e disponibilidade de forrageiras de alta qualidade, enquanto na região Nordeste o inibidor de resultados seria a escassez de água.
Os fatores de produção oferecem vantagens comparativas e podem ser parte do sucesso. Mas, é o ambiente institucional que oferece as vantagens competitivas. Do contrário, como explicar o sucesso da produtividade do leite em Israel? As interações entre os agentes econômicos e os aparatos de governo é que criam estímulos positivos e negativos, que definem o grau de sucesso no setor.
O leite continuará a crescer em locais onde o ambiente for favorável, criando mais facilidades para o processo produtivo como um todo. Portanto, onde as empresas, as entidades paraestatais, o setor financeiro, as instituições de ensino e pesquisas e as diferentes esferas de governos estejam atuando em prol do setor. Portanto, a produção continuará a crescer na região Sul, no Sudeste de Goiás, na região do Cerrado Mineiro e em pontos localizados do Nordeste e Norte. No restante da região Sudeste, a atividade leiteira continuará sua trajetória de perda relativa de importância.
7 - PERMANECERÁ NA ATIVIDADE QUEM TIVER VISÃO DE NEGÓCIO
Os dados dos Censos Agropecuários mostraram que, entre 1996 e 2006, o Brasil contabilizou o primeiro impacto estrutural do setor de produção, quando uma propriedade deixou a atividade a cada onze minutos. No censo seguinte, o de 2017, a velocidade de saída de produtores caiu, já que foi um período de melhoria nas margens recebidas pelos produtores. Esse censo mostrou que, ao contrário do que era voz corrente, não foi percentualmente o pequeno produtor que majoritariamente deixou a atividade. Cerca de 71% dos produtores ainda produziam até 50 litros/dia, e 27% entre 51 e 500 litros/dia. Além de problema de sucessão, saiu da atividade quem não concebia leite como negócio. Em boa parte, profissionais liberais que tinham na atividade um lazer e esperavam, além do lazer familiar, fazer dinheiro, o que é um contrassenso. No capitalismo, paga-se para se ter lazer.
A atividade leiteira é fortemente impactada pelo efeito escala de produção. Quanto maior a produção menor é o custo unitário do leite produzido. Portanto, é natural que cresça a pressão sobre os produtores para que apresentem crescimento contínuo de produção. Mas, o que vai continuar a definir se o produtor terá fôlego para permanecer na atividade é se a produção é vista estrategicamente como negócio. Isso significa mudar da visão patrimonialista tradicional, em que o produtor, por ter vacas e instalações, tem garantia de resultado mensal. Planejamento estratégico, metas de longo prazo, visão da propriedade como empresa, concepção capitalista na tomada de decisão são os ingredientes fundamentais para quem permanecerá no setor nesta década. Não há mais espaço para o amadorismo nesta atividade.
Para as empresas cujos clientes são os produtores de leite, há um desafio e uma oportunidade. Até a década passada, as empresas de insumos tiveram como modelo de negócio a venda de produtos. Na virada década, as mais dinâmicas começaram migrando o modelo de venda de produtos para a venda de serviços, o que é um grande feito. Mas, o nível de exigência do produtor crescerá com a especialização e será bem-sucedida a empresa que oferecer mais que serviços, soluções. Conhecer o modo de atuação das empresas neozelandesas pode ser inspirador.
8 - MEDIR DESEMPENHO É REQUISITO DE SUCESSO
Em 2011, juntamente com os colegas Alziro Carneiro e Luiz Carlos Takao, da Embrapa Gado Leite, visitamos 156 propriedades, em dez regiões dinâmicas de cinco estados (RS, PR, SP, MG e GO). Buscávamos conhecer os custos de produção. Sim, 21 anos atrás era necessário ir a campo para apurar os custos. Visitamos produtores que atuavam de modo profissional, na visão dos laticínios, independentemente de tamanho.
Mas, para nossa surpresa, apenas 18% dos produtores levantavam regularmente seus custos de produção. Para apurá-los juntamente com os outros 82%, levamos em consideração a memória dos produtores, o que tornava o resultado impreciso e duvidoso. Aferir custos é como medir temperatura e pressão corporal. São medidas essenciais para avaliação de saúde de uma pessoa. Mas, se estiverem normais, isso não assegura saúde plena.
A atividade leiteira é muito complexa porque é baseada num ser sofisticado, que é a vaca, que produz uma matéria prima complexa, que é o leite. Medir resultados zootécnicos e econômicos e suas múltiplas interações é fator definidor de eficiência na atividade. Incorporar esta prática na rotina está acessível aos produtores, por meio de startups, que oferecem serviços de monitoramento do animal, da qualidade do alimento, do leite produzido e dos indicadores de desempenho em termos zootécnicos e econômicos. São tecnologicamente amigáveis e é baixa a barreira para adotá-los, já que não são de custo elevado. O sucesso passa por medir desempenho. Não há mais espaço para voo cego.
9 - MONITORAR O MERCADO, OUTRO REQUISITO DE SUCESSO
O leite é a commodity com o maior conjunto de variáveis a interferir na formação de custos e no preço ao produtor. Há forte sensibilidade desde o clima, que impacta a oferta de leite, até o comportamento de variáveis macroeconômicas, como câmbio, PIB e inflação, que impactam o consumo, por ser o leite um produto de mercado interno, e por ser o que os economistas chamam de bem-salário, ou seja, o consumo está diretamente vinculado ao poder aquisitivo do salário real.
Mas, por ser uma cadeia longa, os mercados de grãos, energia e mão de obra impactam especificamente a atividade, de modo muito intenso, pois o conjunto desses itens representa até 80% do custo do leite ao produtor. Já o leite adquirido do produtor e os custos de captação representam até 70% do custo final de um laticínio.
Ainda permanece forte a cultura do produtor não acompanhar as oscilações de mercado e tomar decisões com base nas mudanças percebidas. Os valores de arremates nos leilões mostram que ocorre, com frequência, o efeito chicote, ou seja, a conjuntura do varejo muda de situação favorável para o revés, mas o produtor, sem mecanismos de percepção, adquire animais com valores baseado em informações não atuais, sem considerar uma virada de mercado já ocorrida. Este é apenas um exemplo muito frequente.
Para ser competitivo nesta década, o produtor terá de incorporar a rotina de acompanhar os diferentes mercados, e não somente o preço do leite no mercado spot. Acesso a informações não é problema. A Embrapa Gado de Leite e outras entidades públicas e privadas editam boletins de análise de mercado e os distribuem gratuitamente.
10 - MARGENS CONTINUARÃO ESTREITAS
O produtor de leite é tomador de preços quando compra insumos e quando vende seu produto. Portanto, não tem controle efetivo sobre sua receita. Isso traz um grau de incerteza muito forte para o negócio. Exige, portanto, maior acurácia de gestão, em um setor que tem a característica de oferecer margens estreitas. Esta característica tenderá a se acentuar, com o fenômeno da pandemia e com a Guerra na Ucrânia, fatores que deixarão impactos para toda a década.
O mundo vive um período de estagflação, ou seja, inflação ascendente e economia mundial estagnada. Isso repercute no Brasil, onde os preços dos insumos continuarão elevados e a economia brasileira não mostra sinais de recuperação consistente, já que a taxa de investimento – o principal indicador de horizonte futuro – continua abaixo de 20% do PIB. Margens estreitas dificultam investimentos na atividade, por falta de caixa. Todavia, é preciso investir e crescer a produção para que as margens possam crescer. Este dilema estará presente em toda a década no negócio leite.
11 - LEITE SERÁ COMMODITY FOOD TECH
Leite continuará a ser commodity, ou seja, um produto básico, comercializado em larga escala. Todavia, há um diferencial em relação às demais commodities. Leite chega ao mercado necessariamente após beneficiamento, que o transforma em 90 componentes e 70 derivados. Ademais, há todo um envolvimento com os animais, com a beleza de cenários onde se produz, tradição dos produtos, vínculos afetivos com marcas. Juntamente com o café, o leite desperta emoções e é possível desenvolver narrativas diferenciadoras, que permitam capturar valores extra-mercadoria.
A indústria brasileira de lácteos tem mostrado um razoável dinamismo nos últimos 10 anos, com o desenvolvimento de produtos novos, o que fez as prateleiras e freezers dos supermercados ganharem nova vida. Todavia, o novo consumidor – e suas exigências – pressiona por transformações radicais nos produtos lácteos, o que exige a adoção de novas ferramentas e novas práticas. Rastreabilidade plena, cadeias curtas, bem-estar animal, saudabilidade, resíduo zero e reciclagem total, produtos saborosos e saudáveis. Estes são os novos desafios. O consumidor anseia que o leite que estará em sua mesa, por meio de diversos derivados, faça bem à sua saúde e seja resultante de vacas e pessoas felizes.
Para que o leite tenha menos posição de commodity e entre no mundo foodtech, é preciso manter a dianteira que o setor tem em relação às demais commodities, investindo na construção contínua do Leite 4.0, iniciada pelo movimento Ideas For Milk, com a disseminação do uso de blockchain, IOT, pecuária de ultra precisão, tecnologias cada vez mais vestíveis e se preparando para o mundo do metaverso.
12 - LEITE SERÁ CARBONO NEUTRO
O principal desafio que o setor enfrentará nesta década está relacionado à agenda ambiental. Leite está posicionado como um produto de forte impacto negativo, sob este aspecto. Não chega a ser como a carne vermelha, cujo setor precisa responder aos consumidores externos sobre a questão da Amazônia, sempre associada à produção brasileira de carne e soja. No caso do leite, a questão são os arrotos dos animais.
Durante a pandemia, a questão ambiental deixou de ser assunto de ativistas apenas e foi incorporada pelo capitalismo de modo imediato e intenso. Larry Fink é presidente da Blackrock, a principal administradora de ativos financeiros do mundo, com US$ 10 trilhões em carteira ou 6,5 vezes o PIB do Brasil. Em 2020, meses após o início da pandemia, ele comunicou ao mercado que estava se desfazendo de aplicações em empresas que tinham processos de produção que impactavam negativamente o meio ambiente. Referia-se às empresas da velha economia, como petrolíferas e de mineração. Ele declarou que estava agindo nos conselhos de administração das empresas que a Blackrock tem acento para substituir os dirigentes que não demonstram planejamento de ação em prol do meio ambiente.
Esta posição teve impacto avassalador no rápido reposicionamento das empresas mundiais, que criaram suas estratégias para a neutralização da emissão de carbono, buscando compensar todas as etapas do processo produtivo. Evidentemente, nenhuma empresa conseguirá este feito de modo imediato e a meta é atingi-la em 2040 ou 2050, dependendo de cada empresa. No caso brasileiro, há o desafio de neutralizar em ambiente tropical. Todavia, o primeiro desafio é construir calculadoras nacionais que contabilizem a pegada de carbono de etapas da produção de leite, considerando a realidade brasileira. Não é apropriado usar aquelas construídas sob a ótica dos países temperados, por não expressarem o modo de produção local.
Este assunto permite atuação em forma de consórcio, uma típica ação pré-competitiva entre empresas concorrentes. Haverá ganhos para todos se as empresas se reunirem com as universidades, institutos de pesquisas e Embrapa, para que possamos avançar em tecnologias regenerativas, adotando economia circular ao longo de toda a cadeia. Esta será a década da criação de sistemas de produção com neutralidade de carbono. Sua disseminação ocorrerá intensamente na próxima década. Empresas e produtores que não acompanharem este processo em curso serão excluídos.
Paulo do Carmo Martins é pesquisador da Embrapa Gado de Leite, de Juiz de Fora-MG.