Por Gelson Luís Dias Feijó - Embrapa Gado de Corte, Guilherme Malafaia - Embrapa Gado de Corte, Sergio Raposo de Medeiros - Embrapa Pecuária Sudeste, Urbano Gomes Pinto de Abreu - Embrapa Pantanal, Vinícius Lampert - Embrapa Pecuária Sul. Embrapa Empresa pública brasileira que busca viabilizar soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura, em benefício da sociedade brasileira. Boletim nº 59 - Análise da equipe de especialistas.

A comunidade internacional está dizendo que a carne brasileira é produzida à custa da degradação da floresta amazônica, mas o que pensa a sociedade brasileira sobre a nossa carne bovina? Você sabe como é produzida a carne brasileira?

Com exceção daquelas pessoas que têm envolvimento com o agronegócio e, em particular, aquelas ligada à bovinocultura, grande parte da sociedade brasileira não tem a menor ideia de como o Brasil passou de importador de carne, incluindo carne russa na década de 1980 (até com o recebimento de uma partida suspeita de contaminação radioativa oriunda da usina de Chernobil), ao posto de maior exportador de carne bovina para o mundo. Será que uma evolução desse tamanho aconteceu às expensas da floresta amazônica? Não, obviamente que não. Isso foi fruto de uma mudança sistemática baseada no aumento da produção e na melhoria da produtividade observadas no aumento da eficiência em todos os elos da cadeia de bovinocultura de corte, com investimentos pesados em pesquisa, com ampla difusão do binômio braquiária/zebu na região subtropical do Brasil Central, com a dedicação sem precedentes de destemidos produtores rurais que acreditaram na vocação do solo brasileiro para o agronegócio e também do fomento governamental, que de uma maneira ou outra ajudou na interiorização da pecuária, no reconhecimento do produto nacional que juntos culminaram na revolução hoje observada de sul a norte e de leste a oeste nesse país continental. Aliás, a questão do gigantismo é, talvez, a razão de a sociedade desconhecer a carne bovina que consome.

A carne bovina é tratada como commoditie, ou seja, é, presumidamente, comercializada de forma indiscriminada ou, como se diz no jargão popular, vendida como “bica corrida”. Ora, se conceitualmente deveria ser, em fato não é verdade. Se a carne bovina é diferente ou tem características específicas conforme a localização anatômica dos cortes em um mesmo boi, imagina se seria igual uma vez proveniente de dois bois distintos? Ou se oriunda de um boi quando comparada com outra oriunda de uma vaca? Quem dirá que será a mesma coisa se oriunda de bois criados de maneiras distintas? Será que a carne de um boi criado no bioma amazônico, na região Norte, produzirá carne similar à carne de um boi criado no Bioma do Pampa na região sul?

Usando números da pecuária nacional (Beef Report. Perfil da pecuária no Brasil 2022), vamos tentar caracterizar a carne brasileira e mostrar à sociedade como essa carne é produzida.

O rebanho nacional em 2021 era na ordem de 196 milhões de cabeças, e dessas foram abatidas cerca de 39 milhões (cerca de 20% do efetivo), que geraram cerca de 10 milhões de toneladas de carne. Desse montante, os brasileiros consumiram cerca de 75%, ou seja, a população brasileira consumiu cerca de 100 mil bovinos ao dia e cada brasileiro consumiu algo como 34 kg de carne ao ano.

Em números redondos, oito em cada dez bovinos abatidos são consumidos pelo mercado interno, cabendo mencionar que esses outros dois bovinos são exportados e rendem consideráveis divisas para o país, sendo fruto dos esforços conjuntos do governo brasileiro quando abre mercados, dos produtores quando preparam animais conforme a demanda e dos frigoríficos quando atendem às normas sanitárias e preparam os cortes conforme exigências dos países importadores. Quem abre o mercado é o governo, quem produz são os produtores e quem vende são os frigoríficos.

E de onde tem vindo essa carne que foi consumida pelos brasileiros? Essa é uma pergunta muito complexa, mas vamos respondê-la de forma simples, pensando no passado e fazendo algumas suposições que, com meia dúzia de questionamentos e evidências, facilmente seriam provadas como irreais. Porém serão úteis ao propósito deste exercício. Assumindo a carne bovina como uma commoditie, que a produtividade da pecuária brasileira seja uniforme em todo o país, que não exista diferença entre boi e vaca, que as raças sejam todas iguais, que a produção dependa única e exclusivamente do efetivo bovino e que, infringindo todas as leis da logística, a carne seja distribuída uniformemente pelo país. Assim, dando continuidade ao exercício de caracterizar a carne consumida pelo povo brasileiro, podemos dizer que a cada 100 animais consumidos pela população Brasileira, 35 animais vêm da região Centro Oeste, 22 são oriundos da região sudeste, 16 da região sul, 14 da Norte e 13 do Nordeste.

Assumindo que o binômio braquiária/zebu é predominante em todo o Centro-Oeste, em grande parte do Sudeste, em grande parte do Norte, na região do Matopiba, e no Paraná, não seria exagero dizer que cerca de 75% dos animais abatidos possuem genética zebuína (Nelore em sua maioria) e comeram capim braquiária, em outras palavras 3 em cada 4 kg de carne consumida pelos brasileiros é, muito provavelmente, de zebuíno que comeu braquiária.

Colocando o contexto biológico do binômio braquiária/zebu e que os animais sofrem com os efeitos das sazonalidades climáticas, os mesmos só conseguem atingir ponto de abate com pelo menos 3 anos de vida. Conforme as estatísticas de abate, cerca de 40% dos animais abatidos são fêmeas, com vacas de descarte como predominantes, facilmente chega-se à conclusão de que o brasileiro, quando come carne, essa carne é proveniente de animais erados criados a pasto. Essa seria a pecuária modal brasileira desde algumas décadas, constituindo a chamada pecuária tradicional. 

Por outro lado, a evolução da pecuária brasileira se deu com progressos em diferentes áreas do conhecimento e esse modal passou a ser apenas uma referência do passado. Ou seja, a cadeia tem a sua disposição sistemas que, embora baseados no binômio braquiária/zebu, contêm elementos de avanço por meio de melhoramento genético, seja pela seleção de reprodutores e matrizes superiores para características de interesse econômico, seja pelo direcionamento dos acasalamentos desses animais superiores buscando complementariedade em fenótipos específicos, seja pelo cruzamento para também buscar a complementariedade entre raças, seja pelo avanço no manejo nutricional como o uso de suplementação alimentar em diferentes fases do crescimento animal, buscando corrigir deficiências sazonais em qualidade e/ou quantidade de alimentos, ou até mesmo por meio de práticas como adubação, manejo e irrigação de pastagens, conservação de forragens e o uso de confinamentos. Portanto, a pecuária passou a aplicar uma série de conhecimentos que se tornaram inovação e permitiram o abate de animais muito mais jovens que a pecuária tradicional, aumentando tanto a produção quanto a produtividade para machos e fêmeas. Isso faz com que a caracterização da carne consumida pelo brasileiro seja difícil pela complexidade e variabilidade dos sistemas de produção de carne adotados no Brasil. Ora o consumidor brasileiro come carne oriunda de vacas de descarte de oito ou mais anos, ora de bois de 4 anos criados a pasto, ora de bois de três anos terminados com suplementação a pasto, ora de bois de dois anos terminados em confinamento, ora de animais machos ou fêmeas abatidos com 14/15 meses recriados/terminados logo após o desmame em confinamento.

Em síntese, carne bovina não poderia ser considerada como parte do grupo das commodities, pois sem dúvida carne bovina não é tudo igual. Além de a carne brasileira não ser um produto único quanto ao processo produtivo e padrão sensorial, para complicar, os diferentes sistemas de produção também não conseguem gerar um produto típico, específico de cada um. Os sistemas que entregam um produto com certa diferenciação e uniformidade, são aqueles intensificados que propiciam o abate de animais com 14/15 meses e com menor grau de sangue zebuíno, onde a carne apresenta maciez acima da média, porém com coloração menos avermelhada, com gordura externa esbranquiçada, com pouca deposição de gordura interna e algumas vezes sabor distinto do tradicional, ou seja, pode ser um produto diferente e macio, mas não agradar a todos. Ainda não há métricas ou análises científicas passíveis de serem aplicadas e que sejam capazes de diferenciar uma carne da outra, a única ferramenta disponível ao consumidor é o histórico associado ou não a selos de garantia ou certificação, um aspecto intangível que pode ser útil para agregar valor e atender a nichos de mercado. Seja como carne oriunda de animais de uma determinada raça, carne oriunda de um determinado processo de produção ou carne oriunda de uma determinada região. A grande dúvida é se o consumidor vai conseguir identificar diferenciais sensoriais suficientes para levá-lo a valorizar essa carne com selo ou se vai valorizá-la somente pelo intangível, seu histórico e certificado. Há precedentes indicando que o intangível pode valer muito mais que os atributos tangíveis de um dado produto. Exemplos de marcas e etiquetas super-valorizadas em diferentes tipos de produtos não faltam. Será que um selo valerá mais que os aspectos sensoriais da carne, digamos, a maciez? 

Por fim, nesse momento, a pecuária brasileira está experimentando alternativas para dar mais um salto gigantesco, talvez até maior que o experimentado na virada do século, o uso massivo da integração lavoura/pecuária proporcionará ganhos quali-quantitativos incalculáveis na produção da nossa carne, fortalecendo ainda mais nossa posição competitiva no mercado global.