Helena Ferreira Lage é Doutora em Nutrição Animal e Professora Adjunta no Centro Universitário Newton Paiva. Ainda contribuíram com este artigo Ana Luiza Costa Cruz Borges, Professora Associada EV – UFMG e Pedro Araújo Carvalho, Mestre em Nutrição Animal.
Sem dúvida, a soja é um dos principais ingredientes utilizados na nutrição animal e sua utilização consiste na adoção de uma diversidade de produtos oriundos do processamento do grão. Dentre os diversos produtos obtidos pelo processamento da soja, pode-se destacar o grão de soja cru (sem nenhum tipo de processamento) ou tostado, o farelo de soja, o óleo de soja e a casquinha de soja. O farelo de soja merece destaque por ser uma das principais fontes de proteína para vacas leiteiras.
Embora seja um ingrediente derivado da soja, é possível ver na tabela 1 que o percentual de proteína da casquinha de soja é bem inferior ao do farelo, permitindo sua classificação como concentrado energético, já que a casquinha é um ingrediente rico em carboidratos.
Tabela 1. Composição da casquinha de soja, fubá de milho e farelo de soja (percentuais expressos com base na matéria seca)
Proteína: análise de proteína bruta (PB); Fibra: análise de fibra insolúvel em detergente neutro (FDN); NDT: nutrientes digestíveis totais (relacionado com a energia do alimento). Fonte: CQBAL 4.0
Na nutrição de vacas leiteiras, o fornecimento de maiores quantidades de energia normalmente é feito pela inclusão de cereais ricos em amido (milho, principalmente). Além de ser altamente digestível (muito aproveitado), o amido favorece a formação de um ácido orgânico no rúmen, o propionato, que está associado com maior volume de leite produzido pela vaca. A casquinha de soja, embora seja fonte de energia, apresenta características diferentes do milho (tabela 1).
Todo grão possui uma estrutura denominada “pericarpo”, que corresponde a um envoltório fibroso associado com a proteção do grão. No processamento da soja, este envoltório é removido e irá compor o ingrediente conhecido como casquinha de soja. A relevância desta informação é de que, ao contrário de outros concentrados energéticos, a casquinha de soja é pobre em amido e rica em fibra.
Ingredientes ricos em fibra, como os alimentos volumosos (pastagens, cana-de-açúcar, silagens, etc.) são classicamente conhecidos por seu baixo valor energético quando comparados aos concentrados. Sendo assim, cabe a elucidação do seguinte ponto: como então um ingrediente rico em fibra pode ser utilizado como um concentrado energético? A resposta para esta pergunta consiste no entendimento das características da qualidade da fibra da casquinha de soja.
Ingredientes ricos em fibra fornecem energia para o animal por meio do processo de fermentação. A fermentação da fibra do alimento pelos microrganismos presentes no rúmen produz uma série de ácidos orgânicos ou ácidos graxos voláteis (AGVs), que são absorvidos pela parede rumenal e utilizados pelo metabolismo da vaca como fonte de energia. Sendo assim, é lógico pensar que quanto maior a fermentação da fibra no rúmen, mais AGVs serão produzidos e assim, maior será o fornecimento de energia para o bovino. A fibra da casquinha de soja, por ser uma fibra de boa qualidade, apresenta altas taxas de fermentação no rúmen e possibilita maior quantidade de AGVs produzidos. A fibra de alimentos volumosos, por sua vez, por ser de qualidade inferior, é menos degrada no rúmen e fornece, portanto, menos energia para o animal.
Seria então interessante a substituição completa de alimentos volumosos pela casquinha de soja para a obtenção de uma dieta mais energética? Não é bem assim... Embora a casquinha de soja possa substituir parte do volumoso da dieta, a mesma não possui a característica que a fibra do volumoso tem em estimular a ruminação, o que impede uma substituição completa.
Na nutrição, a fibra que possui capacidade em estimular a ruminação é chamada de fibra fisicamente efetiva. Para que tenha capacidade em estimular a ruminação (isto é, tenha efetividade), a fibra deve compor uma camada do rúmen denominada de “colchão fibroso”, que é composta por partículas menos densas, como por exemplo, fibras mais longas (que “flutuam” no rúmen), como mostra a figura 1.
Figura 1. Estratificação do rúmen: partículas menos densas, como alimentos volumosos, estão presentes no colchão fibroso e estimulam a ruminação. Partículas mais densas localizam-se principalmente na fase líquida e não estimulam a ruminação. Adaptado de Tschuor e Clauss, 2008.
A fibra da casquinha de soja apresenta baixa efetividade, pois ao entrar em contato água presente no ambiente rumenal, a mesma se hidrata e aumenta sua densidade. Portanto, ao se hidratar, a casquinha “afunda” e irá compor a fase líquida do rúmen, não apresentando capacidade em estimular a ruminação. O estímulo da ruminação é importante, pois ao ruminar a vaca aumenta sua produção de saliva, que é rica em bicarbonato, colaborando na manutenção de um ambiente rumenal mais saudável e menos ácido. Além da falta de efetividade, outra limitação que pode ser associada à utilização da casca de soja em substituição ao milho é a redução da energia da dieta, com consequente redução da síntese de proteína pelos microrganismos do rúmen.
A maioria dos trabalhos científicos avaliando a inclusão de casquinha de soja na dieta de vacas leiteiras trabalha com inclusões máximas de 25% da matéria seca da dieta. Um trabalho americano reuniu os dados diversos estudos que avaliaram a inclusão da casquinha de soja na dieta de vacas leiteiras (Ipharraguerre e Clark, 2003). De acordo com os dados apresentados, os autores mencionam que a casquinha de soja pode substituir o milho em até 30% em dietas com alta inclusão de grãos (“alto”, significando mais de 50% de grãos na matéria seca da dieta). Inclusões superiores a estas podem fornecer menor quantidade de energia para os microrganismos do rúmen e prejudicando a síntese de proteína microbiana.
Já como substituto de alimentos volumosos, a casquinha de soja pode substituir até 25% destes alimentos, desde que a dieta possua adequados níveis de fibra efetiva (normalmente fibras mais longas, que estimulem a ruminação). Caso a substituição seja maior do que a indicada, isto pode promover maior acidificação do rúmen (pela menor produção saliva) e acarretar redução de consumo pelas vacas.
A utilização da casquinha de soja pode ser uma estratégia bastante interessante na formulação de dietas de vacas leiteiras, pela possibilidade de redução de custos pela substituição parcial do milho ou para o aumento da densidade energética das dietas em substituição parcial de alimentos volumosos. Entretanto, devido às suas características, é recomendável que os limites de inclusão apresentados pela literatura científica sejam respeitados de forma a evitar problemas associados à produtividade e saúde das vacas.